A mulher entrou em minha sala de atendimento com a expressão facial tensa. Contou-me algo de sua história e de como havia sido humilhada e maltratada durante parte de sua infância e adolescência pela madrasta. A mãe havia falecido quando ela era ainda muito pequena, e após alguns anos o pai se casara novamente e a relação dela com essa segunda esposa do pai nunca fora boa. Havia muitas questões não resolvidas e mágoas acumuladas.
Ela saíra de casa cedo com 17 anos, para cursar faculdade em outra cidade e nunca mais retornara à casa paterna. Durante anos mantivera uma distância “confortável” morando em outras cidades e até no exterior, com o intuito de evitar conflitos. Entretanto, o pai agora estava com uma doença terminal e isso mobilizara nela uma aproximação.
A razão que a trazia ao aconselhamento era o sentimento de aproxima-se do pai que conflitava com a ideia de que ele a havia “traído” ao se casar com essa outra mulher, especialmente pelo fato de o pai não ter percebido como durante anos a nova esposa tratara os filhos como intrusos na relação dela com o marido. Para essa jovem senhora o que o pai fizera com ela na infância “não tinha perdão”.
São inúmeras as situações familiares em que um membro se sente injustiçado pelos demais – sendo essa injustiça real ou imaginária – e que causam rupturas no interior das famílias. Entre os filhos de Jacó houve algo similar quando os irmãos de José ficaram fartos de suas afirmações de que ele seria o centro da família e que todos se curvariam diante dele (Gn 37.9-10). Isso foi a gota d´água para que os irmãos tramassem a morte de José – que só foi evitada pela intervenção de Rúben, o irmão mais velho.
São situações em que o perdão nem sempre flui com facilidade. Na maioria das vezes evita-se o contato para justamente não se confrontar com os sentimentos negativos que envolvem aquelas relações. Todavia, carregar o peso de emoções negativas ao longo da vida pode ser altamente corrosivo para a saúde emocional. Há doenças físicas (que vão de gastrites a alguns tipos de câncer) e emocionais (como certos tipos de depressão) que decorrem da não resolução de situações conflitivas.
Inúmeras vezes a Bíblia nos incentiva a perdoar tais situações para que vivamos vidas mais saudáveis. Perdoar requer mudar a perspectiva que temos do mundo, o qual frequentemente construímos a partir de uma ilusão. Criamos um lugar onde buscamos prazer e evitamos a dor. Mas essa construção dificulta a percepção do amor incondicional de Deus pois dissocia a realidade de uma ingênua perspectiva que marca por um lado um âmbito idealizado (só felicidade) e por outro lado algo separado de Deus, onde há sofrimento. Somente quando perdoamos resolvemos essa dicotomia, já que perdoar é a expressão mais clara do “ministério de reconciliação”. Perdoar é poder escolher de novo, livrando-nos da obsessão da repetição. Perdoar não é eliminar o erro, mas começar a eliminá-lo.
Quando se perdoa, outorga-se outro ponto de vista, dá-se um novo sentido para o que foi feito. Dessa forma somos capazes de transformar o intento original do ofensor. Essa vitória implica colocar o ofensor sob o âmbito governado pelo amor de Deus. Perdoar é a capacidade de consentir um mandado a Deus a fim de poder assistir ao milagre de sua graça. Por isso, exercitemos o perdão dentro de nossas famílias.
Autor: Carlos Catito
Fonte: Revista Ultimato, ano LII, nº 378, Julho/Agosto 2019, página 30.